Sociedade
27/1/2015 - 02h32
O manifesto do artista brasileiro Frans Krajcberg
por João Meirelles Filho*
Frans Krajcberg em coleta de materiais para sua arte.
Resumo – Este
ensaio narra a trajetória do artista brasileiro Frans Krajcberg, que
completa 94 anos em 2015. Aborda três questões essenciais, do ponto de
vista do autor: 1. A doação do
Sítio Natura e de seus bens,
como seu mais importante Manifesto; 2. A experiência do último conjunto
de expedições à Amazônia, de 1984 a 1988, que o autor denomina de
Ciclo Juruena, e seu impacto na vida e obra do artista; e, 3. O desafio de
Como criar a Expressão Brasileira, em que o autor sugere quatro medidas: 1. Elaborar o
catálogo raisonée do artista
;
2. Ampliar o debate sobre a vida e obra do artista; 3. Criar a escola
de arte para jovens, tal qual proposto por José Zanine Caldas e Frans
Krajcberg na década de 1970; e, 4. Divulgar a vida e obra do artista
para a população da Amazônia, onde é bastante desconhecido, apesar de
defende-la veementemente, e por ser a região de onde se origina sua
matéria prima e inspiração.
Palavras chave: Amazônia. Arte. Florestas tropicais. Frans Krajcberg. Manifesto artístico. Queimada.
Abstract – This
essay presents the Brazilian artist Frans Krajcberg. He completes 94
years in 2015. The author recommends three actions: 1. To consider the
artist’s donation of his land
Sítio Natura, and his belongings as his most important
Manifesto;
2. Increase the debate about the artist’s work and life; 3. As proposed
by Zanine Caldas e Frans Krajcberg in the 1970s, create an art school
for the youth; 4. Disseminate the artist’s work and life to the
population of the Amazon region where he is still unknown and from where
most of his inspiration and raw material comes from.
Key words: Amazon. Art. Art Manifest. Frans Krajcberg. Forest Burn. Tropical Forests.
1. Introdução
Não
pertenço a movimentos. Os únicos movimentos são os dos astros, marés e
ventos. A Natureza é a minha arte! – Como posso fugir desta realidade? [KRAJCBERG, Depoimento ao autor,1985].
Este ensaio é uma versão ampliada do capítulo sobre Frans Krajcberg, que aqui trato como Frans, no livro
Grandes Expedições à Amazônia Brasileira – Século XX, pela
Editora Metalivros, de São Paulo, publicado em 2011 [MEIRELLES, 2011]. A
maior parte das referências é de transcrição de gravações, entrevistas e
notas em meus diários, coletadas entre 1984 e 1988, para que
compusessem uma biografia sobre o autor. Mais de vinte anos depois,
retomo o trabalho, e prossigo no processo de registro (de 2011 ao
presente). A principal preocupação é apresentar o pensamento do artista
como um manifesto permanente, relacionando-o a sua vida e obra, neste
ensaio com atenção especial à causa ambiental.
2. A arte de doar
Doar seus bens ao patrimônio público – o
Sítio Natura,
em Nova Viçosa, Bahia, suas esculturas, obras de arte, livros e objetos
– é o mais duradouro manifesto de Frans Krajcberg, que completa 94 anos
em abril de 2015. Quiçá, o único manifesto que realiza sozinho, como
veremos adiante.
No Brasil, raríssimos são os artistas e
intelectuais que, num gesto de desprendimento, legam ao bem público, o
resultado material arduamente amealhado ao longo de uma vida, incluindo
parte substantiva de sua obra e bens.
Frans inspira-se em Roberto Burle Marx (1909-1994), que delega seu sítio em Guaratiba, no Rio de Janeiro, atual
Sítio Roberto Burle Marx,
ao patrimônio público. Diferentemente do colega paisagista e seu irmão
que, em 1985, selam seu destino ao governo federal, por meio do
Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN), Frans
prefere o Governo do Estado da Bahia, para o Instituto do Patrimônio
Cultural e Artístico da Bahia (IPAC)
[i],
seja pela morosidade na análise do processo pelo IPHAN, como pela rara
acolhida dos governantes da Bahia e de sua Assembleia Estadual a seu
projeto de vida. Atualmente, este governo garante, ainda, a sua
segurança e a do
Sitio Natura, tão importantes diante dos oito roubos sofridos na última década.
Frans
já tentara ceder suas esculturas para exposições de longa permanência,
como sucede com cerca de 110 obras para museu em Curitiba, mas
frustra-se com a falta de cuidado da gestão municipal e retoma sua
guarda
[ii].
Houve, também outras iniciativas discutidas entre seus amigos e
colaboradores de diversas partes do Brasil, para que se estabelecesse
uma associação privada para conservar a obra do artista, intento que não
prosseguiu. Somente a associação dos amigos de Frans na França é
criada, como veremos adiante.
O ato de Burle Marx inspira-se, por
sua vez, na doação um ano antes, em 1984, do naturalista Augusto Ruschi
(1915-1986), de seus sítios ao IPHAN, conforme comenta seu colaborador, o
paisagista José Tabacow [TABACOW, depoimento ao autor, 2010]. Trata-se
do Museu de Biologia Professor Mello Leitão, no município de Santa
Tereza, região serrana do Espírito Santo. Ruschi, inclusive, dos três é o
único com descendentes diretos.
É preciso acompanhar a trajetória de Frans, para compreender o
Sítio Natura
como o seu mais profundo Manifesto. Frans é de uma tradição artística
que o manifesto é relevado ao nível de obra de arte. O primeiro
manifesto, de 1978, redige-o Pierre Restany (1930-2003), crítico de arte
francês, na Língua Francesa –
Manifeste Du Naturalisme Integrále (
Manifesto do Naturalismo Integral). Frans o ratifica e, em verdade, será seu maior difusor.
Se, a todo tempo, a sua arte se nutre da pesquisa em campo –
in situ; o arcabouço teórico de Restany contribui para que Frans respalde as opções artísticas
ex situ, como comenta Restany –
foi então que eu redigi o Manifesto do Naturalismo Integral,
e Frans percebeu antes de mais nada essa mensagem da natureza como uma
disciplina do pensamento, uma reordenação do espírito e dos sentidos em
relação ao espaço-tempo mecânico da civilização urbana. Se Mondrian
passou da árvore ao quadrado, ele não fez nada além de utilizar uma das
ínfimas possibilidades da árvore; então façamos explodir o quadrado para
reencontrar a árvore! [KRAJCBERG, 1987, p. 13].
Ao que Frans confirma:
a natureza integral é um virtual reservatório de novas formas [KRAJCBERG
in MEIRELLES, diário, 1985, p. 21].
O
segundo manifesto é de 2011, três décadas depois, quando completa
noventa anos. No Palacete de Artes Rodin Bahia, em Salvador, realiza a
exposição
Grito! Poucos se apercebem que Frans a dedica ao Ano
Mundial das Florestas, comemorado pela ONU. Frans solicita ao poeta
amazonense Thiago de Mello (1926- ) e a mim que redija um manifesto
para que haja um Ano Internacional dedicado à floresta amazônica. O
Manifesto é redigido como uma campanha
– Grito de Esperança pela Amazônia, uma Carta aberta à ONU pela criação do Ano Internacional da Amazônia [MELLO, KRAJCBERG, MEIRELLES, 2011][ANEXO 2, ao fim deste ensaio].
O
processo de criação envolve visitas e troca de e-mails e telefonemas.
Ele me solicita que o leia por diversas vezes e acena; aqui e ali pede
uma palavra mais dura, breves alterações, movimentos com a cabeça e os
olhos a aprovar.
Tem que ser forte, direto [KRAJCBERG, Depoimento ao autor, 2011].
Em 2013, Claude Mollard (1941- ), seu amigo, artista e curador francês, redige o
Nouveau manifeste du naturalisme integral (
Novo Manifesto do Naturalismo Integral)
[ANEXO 4, ao fim deste ensaio]. Tal qual o manifesto de Restany, é por
Frans validado. Este recebe pouca divulgação e sua discussão ainda é
restrita.
O primeiro e o último manifestos são de caráter
artístico, visando posicionar-se na história internacional das artes, e
aquele com Thiago e comigo, de caráter ambiental e ativista. Ainda que a
floresta tropical seja um tema universal, pois está presente em 90
países dos cerca de 200 países do planeta, o manifesto parte de
problemáticas brasileiras.
Quanto ao seu manifesto vivo, o
Sítio Natura,
trata-se de seu manifesto solo, que mais tempo e esforço exigem. É mais
de meio século em prol de uma nova arte e da Mata Atlântica do Sul da
Bahia, a partir da convocação de José Zanine Caldas (1919-2001) no fim
da década de 1960. É Zanine quem convence Frans a se instalar em Nova
Viçosa. O sonho partilhado por Zanine e Frans é constituir um centro de
pensar e produzir arte em prol da natureza – uma escola de arte capaz de
aliar pintura, escultura, mobiliário, manifesto ambientalista,
valorização das técnicas locais e outras questões relevantes. Não há
propriamente um documento que detalhe esta proposta; mesmo assim, é
possível inferir que esta proposta ainda está por se implementar,
questão que será retomada ao final deste ensaio.
3. Frans nos obriga a adotar uma posição
O
que Frans nos lega, a baianos, brasileiros e cidadãos planetários, não é
apenas uma pequena área rural, que protege um fragmento simbólico de
Mata Atlântica (Floresta de Restinga) no encontro com a Região Costeira;
com algumas edificações de Zanine e de seu risco, e obras de arte; e,
sim, um Manifesto – um novo olhar sobre a floresta e a sua ausência –
a Queimada.
Seu
sítio reúne, ainda, pedaços aparentemente inúteis de madeira – raízes,
troncos, cinzas – trazidos a Nova Viçosa, Bahia, em um caminhão baú
(seria um carro funerário?), por mais de três mil quilômetros de
Juruena, Mato Grosso. Parte deste material é transfeito em obras de
arte. A outra parte, reside, em um barracão, à espera de eventual
utilidade – Falarão estes galhos despreparados, cascas de árvore e
troncos calcinados, mais de
Brasil que a maioria dos vetustos tratados acadêmicos?
E
este conjunto material vem carregado de enormes indagações. Frans
atazana a todos sobre a maneira como o brasileiro trata sua terra.
Incomoda-se com o
Brasil-de-arame-farpado, em que o proprietário (ou ocupante) sente-se o dono das árvores, das águas, dos bichos..
. Enfurece-se ao se perceber inteiramente cercado –
não há terra sem dono
[Krajcberg, depoimento ao autor, 1985]. Em uma estrada, Frans se sente
numa prisão, sempre cercado: o Brasil, por todos os seus milhares de
quilômetros de estradas é um campo de concentração.
Frans não
compreende porque o brasileiro primeiro precisa desmatar para dizer que é
dono. Frans prefere o caminho da denúncia, do grito, do pedido de
socorro. Cada escultura, cada fotografia, cada discurso é um manifesto,
um protesto, um
soco no estômago, como gosta de comentar – é a revolta e o inconformismo.
É
difícil não reagir a suas obras – manter-se impassível diante de um
cemitérios de árvores com carvão no chão; ou, em frente a um monstruoso
painel fotográfico que registra o homem iniciando a queimada. É como se
as chamas alcançassem o paraíso que nos prometeram há tanto tempo e,
agora, o consomem, diante de nossos olhos, a troco de algumas
mercadorias comuns e toscas.
Frans rarefaz a fronteira entre a
natureza e a cultura; obriga-nos a novos posicionamentos, a que criemos
nossos próprios manifestos, como templos internos. Para Frans, a arte
deve se posicionar, engajar-se, jamais ausentar-se da luta pelo
reconhecimento da Natureza.
Após passear pelas imensas raízes da
Flor do Mangue, escultura
de grande porte que Frans nos presenteia, ninguém percorrerá o
manguezal impunemente, sem provocar uma experiência, ao mesmo estética e
conservacionista. Frans extrai de sua convivência com estas formações
florestais do litoral baiano o tanino para que a arte valorize a
Natureza, e com a dignidade que merece.
Em verdade, a proposta de constituir seu manifesto permanente –
Natura – verbo, substantivo, adjetivo – está presente em toda sua trajetória. Exposições, livros
, o
sítio e manifestos assim se chamam e, insistentemente, se repetem como
mantra, em permanente oração. Frans abraça seu espaço há décadas, debela
o fogo, afugenta o ladrão de madeira, o desmatador, cinge a floresta,
enxota o falsário de obra de arte e quem o quer fora de combate.
Ele
quer a floresta pública, a água pública, as árvores públicas, os bichos
públicos – o bem público. É uma área pequenina se comparada à mataria
brasileira, um micro jardim botânico, combinação de árvores a partir das
sementes de suas viagens pelo Brasil – um jardim de aclimatação como se
usava chamar –, sala de entrada para o remanescente da Mata Atlântica
de Restinga. E trata o sítio, com muito carinho,
porque minha família está aqui: minhas plantas, meus cachorros… Aonde quer que eu vá fico pensando neles [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Diante
da avassaladora ocupação da região, seu gesto parece inútil, mas de
enormes consequências. Porque as pastagens devoram tudo, engolem até as
margens dos rios e os próprios rios. E, agora, o reflorestamento de
eucalipto, os loteamentos de casas de veraneio e outros empreendimentos
avançam velozmente. Seu sítio
Natura é o manifesto – o oásis,
que grita, alerta para a necessidade de rever padrões na relação Homem e
Natureza, exigindo novas posturas, novas reflexões, um novo pacto com a
Natureza, para um novo momento do Antropoceno.
***
No
fim dos anos 1960, Frans considera mudar-se para São Luís, Maranhão,
mas prefere a proposta de Zanine, que sonha instalar em Nova Viçosa, a
poucos quilômetros da sede deste município, como comentado, um centro
artístico diferenciado, dedicado à natureza
[iii].
Zanine, nascido ali perto, em Belmonte, torna-se referência, como o
mestre das madeiras, e procura, com sua arte, demonstrar o
inconformismo com o desmatamento e o brutal desperdício da madeira. Quer
resgatar as técnicas tradicionais ainda utilizadas pelos pequenos
estaleiros de Viçosa para a construção de móveis e casas. Além da escola
de artes, vislumbra um condomínio de artistas, uma integração entre o
artista e o artesão e o aprendiz, a valorização dos saberes e fazeres
locais.
Nova Viçosa é um destes portos que, nas primeiras décadas
do século XX, assim como o vale do Rio Doce, exporta toras e grandes
pranchões de madeiras tropicais duras, cada vez mais disputadas, como
jacarandá-da-bahia (
Dalbergia nigra), peroba (
Aspidosperma polyneuron), jequitibá (
Cariniana estrellensis), louro (
Cordia trichotoma (Vell.)) e vinhático (
Plathymenia foliolosa),
enviados ao Rio de Janeiro ou diretamente à Europa. Vencida a mata, o
golpe de misericórdia vem com o ciclo de pecuária, que nada respeita.
O
condomínio de artistas não vinga. Gente como Carlos Vergara (1941-
), Jorge Amado (1912-2001), Carlos Scliar (1920-2001) e Chico Buarque
(1944 – ) se interessa mas não leva o projeto adiante e as seguidas
gestões municipais apoiam o loteamento da região por diversas vezes.
Apenas Zanine e o persistente Frans ali se fixam. Carlos Vergara doa o
sítio a Frans. Zanine permanecerá por cerca de uma década em Viçosa,
depois viverá no exterior e no Rio de Janeiro; e, seus últimos anos
serão em Vitória, no Espírito Santo, onde falece em 2001, com 82 anos.
Nestes quarenta anos, seu
Sítio Natura se torna um museu a céu aberto. A primeira edificação é a casa projetada por Zanine, em 1971, denominada
Ateliê Frans Krajcberg, em formato piramidal.
Quem
planejou minha casa foi o Zanine, mas quem realizou e mudou fui eu (…).
Foi muito difícil porque eu morei em uma tenda por vários meses. Eu
vibrava com o mangue e com a natureza, lutava para preservar,
denunciava, mas quantas cartas eu não recebi dizendo para eu parar senão
iam me liquidar? Muitas! Mas não tenho medo disso [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Em 1984, quando conheço Frans, ele mora e trabalha neste ateliê há mais de dez anos. Somente em 1985, Frans se muda para a
Casa da Árvore. Esta
deveria ser a partir de um projeto de Zanine, mas Frans, depois de
diferentes opções, decide seguir seu próprio projeto. A casa está a
cerca de sete metros do chão, sobre o tronco de um enorme pequizeiro (
Caryocar brasiliense),
que Frans encontra calcinado e agonizante num pasto da região. A
construção foi um processo difícil e moroso. Somente avançou quando um
conjunto de sapatas de concreto foi lançado, de forma radial, para
manter a estabilidade da casa. Nos últimos anos foi preciso reforçar a
base de concreto e instalar vigas de suporte nas laterais da casa.
No
interior desta casa-escultura há bancos, mesas e diversos móveis
projetados por Zanine e Frans, a partir de troncos de árvore encontrados
nas queimadas, usualmente, troncos ocos, brocados, rachados ou de baixo
interesse para a serraria. Outras estruturas se seguem nas próximas
décadas, de caráter mais utilitário – como oficina de trabalho, para
abrigar e expor parte de suas obras, servir de escritório, garagem e
atender outras necessidades.
Diferentemente do
Sítio Burle Marx
– que estimula uma série de viveiros de planta comerciais em seu
entorno, além de contribuir para que Guaratiba se torne pólo de turismo
–; o
Sítio Natura, de Frans, até o momento, não sensibiliza
suficientemente a sociedade civil local, o poder público municipal de
Mucuri e Nova Viçosa, ou mesmo, o Governo da Bahia, como um epicentro de
transformação cultural e ambiental, num esforço de valorização
patrimonial natural e cultural.
Do ponto de vista cultural,
observa-se a rápida perda dos saberes e fazeres que tanto angustiam
Zanine. O que se afigura como urgente é a necessidade de registro,
tombamento e salvaguarda deste patrimônio.
No que se refere ao aspecto ambiental, o Sul da Bahia é uma das regiões de florestas tropicais mais ameaçadas do planeta
(hot spot),
pelo seu grau de devastação e pela insuficiência de unidades de
conservação públicas para proteger a biodiversidade e como
representativas da paisagem original. A Mata Atlântica do Sul da Bahia
apresenta um dos recordes mundiais de diversidade de árvores (plantas
lenhosas) do planeta, com 458 espécies por hectare
[iv].
Para se ter uma ideia, uma floresta temperada apresenta 20 a 30
espécies por hectare [MEIRELLES, 2007]. Não deveríamos usar nem o termo
floresta para se referir aos dois ambientes tal a diferença que
apresentam. Preocupa, ainda, que no Extremo Sul da Bahia, a maior parte
das áreas remanescentes de Mata Atlântica esteja em mãos particulares, o
que fragiliza a sua conservação.
4. O que Frans evidencia como notas biográficas
Uma
leitura crítica das diferentes biografias ou linhas do tempo em
publicações e web-sites que apresentam o artista, demonstra a imprecisão
de diversas informações. Há, de um lado, o conhecido e usual
desinteresse do artista em tratar de sua vida, sempre priorizando a
obra, e confundindo seu interlocutores. Porém, é preciso pontuar os
momentos mais significativos de sua biografia pois, trata-se de figura
pública que desperta grande interesse.
Neste sentido estas notas
procuram se ater ao que o próprio Frans comunica-me oralmente, em
diferentes ocasiões. Inicialmente, em 1984 e 1985, solicita-me que
registre em gravador e por escrito a sua vida. Duas décadas depois, a
partir de suas próprias falas e com a sua autorização, algumas
informações são complementadas. Não se visa reconstituir sua vida e sim,
aproximar o homem e sua obra. Trata-se, somente, de registros breves,
que merecem ser completados oportunamente em um trabalho de maior
envergadura.
Nascido em 12 de abril de 1921, Frans viverá até os
dezoito anos na comunidade judaica de Varsóvia, na Polônia. No início da
II Guerra Mundial, os alemães assassinam-lhe a família e enforcam sua
mãe, uma das chefes do Partido Comunista. A invasão de seu país o leva
ao exército soviético e ao exercito polonês na frente russa, onde
aprende o ofício da carpintaria e engenharia, e colabora na construção
de pontes e obras de arte.
Uma bomba o soterra e será salvo por um
amigo. Perde parcialmente a memória de passagens da vida, como o rosto
da mãe, a data do aniversário… Herói de guerra, recebe das mãos de Iósif
Stalin uma medalha. Esta lhe é arrancada em Nova Viçosa, Bahia, no
quinto roubo, dos oito que sofre em seu sítio, pouco antes de completar
noventa anos. Esta perda o abala profundamente.
É deste período a leitura de Alexander Puschkin (1779-1837), Vladimir Mayakovsky (1893-1930) e autores russos.
Eu li muito Marx, no começo, na Rússia [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985]
. No entanto, é com o cineasta Akira Kurosawa e seu filme
Dersu Uzala, de 1975 que se identifica ––
Aquilo que é história! [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985]. Seu roteiro, aliás, baseia-se em obra de um autor russo, Vladimir Arsenayev (1872-1930)
[v], o explorador da taiga, a grande floresta de coníferas da Rússia e região.
Depois
da II Guerra, estuda arte em Stuttgart, Alemanha, com Willi Baumeister
(1889-1955), que o premia e o indica a prosseguir os estudos em Paris,
França. Vive brevemente na capital francesa, em contato com o mundo das
artes, amigo de Marc Chagall (1887-1985), cuja família conhecera na
Rússia, mas, inquieto, prefere migrar.
Quando lhe pergunto sobre
os artistas que mais admira, responde alegre, com os olhos brilhando
mostrando no ar as grandes colagens (
gouaches découpés) de Henri Matisse (1869-1954) em seu fim de vida:
– Eu
estudei em um meio bem abstracionista, com grande influência
concretista e novas formas da Bauhaus e tudo isso… E depois a arte bruta
de Dubuffet, algumas coisas do Braque, Miró, Léger[vi]… E principalmente Matisse, porque a grande exposição de Matisse me deu uma lição enorme! [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Em
1949, as circunstâncias o levam ao Brasil. O contexto no qual se insere
Frans é o de migrante europeu do pós-guerra, sem família ou contatos
pessoais ou comerciais, sem recursos financeiros ou materiais,
desconhecimento da língua e dos costumes. Para Pierre Restany, que
conhece na década de 1960:
O
imigrante polonês que desembarcou no Brasil tem uma necessidade urgente
de renovação afetiva. É a natureza do Brasil que lhe trará a salvação e o
gosto de viver. (…) Krajcberg tornou-se um autêntico brasileiro por
osmose naturalista. Esta osmose naturalista é ao mesmo tempo a projeção
de um estado de consciência [RESTANY in KRAJCBERG, 1987, p. 14].
Inicialmente,
sobrevive ao pintar cerâmica, paredes e, principalmente,
galos-de-briga, animais e outras temáticas em azulejos para a Osirarte,
de Rossi Osir (1890-1959), onde já colaboram artistas, como os do Grupo
Santa Helena, Mário Zanini (1907-1971) e Alfredo Volpi (1896-1988), de
quem Frans se aproxima.
Vive em Praia Grande, São Paulo, em casa
de Mário Zanini, e divide ateliê com Volpi, que muito o considera. Em
1952, Lasar Segall (1891-1957), compra-lhe uma gravura para financiar
sua ida para Monte Alegre do Sul, Paraná –
Segall me mandou, porque eu vivia uma miséria muito grande em
São Paulo [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984]
.
Ali está a família Klabin, também da comunidade judaica, que prospera com a colheita do pinheiro-do-paraná (
Araucaria angustifolia), o plantio de pinus e a nascente indústria de celulose e papel.
Eu
trabalhava como engenheiro e desenhista técnico, desenhando casas e
pontes, tinha uma casa muito conhecida no mato, com a maior coleção de
orquídeas do Brasil. Depois parei com esses trabalhos e vivia só de
cerâmica [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Pouco
tempo permanece nos ofícios relacionados ao reflorestamento, preferirá a
reclusão da cabana na floresta, onde pesquisa sobre a cerâmica e
pintura. Depois de um incêndio em que perde tudo, inclusive sua grande
coleção de orquídeas, decide sair do Paraná para se aventurar em novas
formas de arte além da cerâmica.
Segundo seu depoimento, trabalha
arduamente para se fazer respeitar e reconhecer. Em 1951, participa na
montagem da Bienal Internacional de Arte de São Paulo (I
a Bienal de São Paulo)
– Ciccillo
Matarazzo foi como um pai para mim, eu montei toda a Bienal, e tinha
cinco quadros meus que ninguém sabia que eram meus, eu trabalhava no
Museu de Arte Moderna. Yara Fernandes, que era secretária de Cicillo, me
ajudava muito [KRAJCBERG, depoimento ao autor, julho, 2011].
É
desta época, nos encontros vespertinos de artistas promovidos por
Ciccillo Matarazzo Sobrinho (1898-1977), no Museu de Arte Moderna de São
Paulo, que Frans amplia seus contatos com o mundo artístico paulista e
brasileiro.
Em 1956, muda-se para uma casa abandonada, cedida pelo pai de Sérgio Camargo (1930-1990) em Laranjeiras, no Rio de Janeiro.
Nesta época os artistas se reuniam e se ajudavam uns aos outros… [KRAJCBERG, depoimento ao autor, julho, 2011]
. Seu grande amigo Franz Weissmann (1911-2005), logo mais dividirá com Frans a casa-ateliê em Laranjeiras.
Em 1957, na IV
a
Bienal de São Paulo, o prêmio de melhor pintor nacional será para Frans
Krajcberg; e, o de melhor escultura, para Frans Weismann. Aos 36 anos
de idade, o prêmio abre-lhe o caminho para a venda do primeiro quadro ao
mercado.
E quando ganhei o prêmio
eu não esperava, só queria que entrasse um pouco de dinheiro para não
passar fome. Nesse período era um concretismo danado, e eu sofri muito
disso, então quando eu ganhei o prêmio foi uma surpresa para todo mundo [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Em
Paris, a partir de 1958 e na década de 1960, viverá um período
efervescente. Convive com grandes artistas, como Pablo Picasso
(1881-1973), Georges Braque (1882-1963), Marc Chagall e Joan Miró
(1893-1983). Estes circulam no perímetro da arte, como a Galerie du XX
e
Siècle, que, inclusive, publica uma revista. Braque vê uma exposição de
Frans e quer trabalhar com ele. Juntos realizam duas litografias –
Frans molda o papel e Braque pinta. Uma gravura de Braque também
desaparece num dos roubos de Nova Viçosa.
Em 1964, recebe o Prêmio
Cidade de Veneza, na XXXII Bienal de Veneza, na Itália, a primeira
premiação fora do Brasil. Estes prêmios e a atenção a sua obra
permitem-lhe longas estadias na Europa. A fotografia entra em sua vida
em 1967, em Ibiza, nas Ilhas Baleares, Espanha, como esforço de
registrar sua obra a partir do desenho da natureza na praia. Sua obra
consiste em fixar relevos da areia, terra e pedra em moldes de gesso,
que depois são passados para outros suportes.
Os quadros de pedra abandonei logo, porque eu vi que tudo que eu fazia era mais pobre que a natureza [KRAJCBERG, Depoimento ao autor 1985].
Frans
reputa essa fase como muito produtiva e de grande reconhecimento, com a
maioria das obras compradas por colecionadores da Europa. No entanto,
um chamamento interno o leva a deixar a França. Busca algo novo. Frans
vê Paris como centro de repercussão e não de produção. Frans está
convicto sobre seu próprio norte:
Não pertenço a movimentos. Os
únicos movimentos que me levam são dos astros, marés e ventos. A
Natureza é a minha arte! – Como posso fugir dessa realidade? [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985].
A
partir deste momento, alterna estadias em Paris e no Brasil. Terá,
ainda, um pequeno apartamento no Rio de Janeiro, próximo a sua grande
amiga, a artista Anna Letycia Quadros (1929- ), intercalando viagens
ao interior ou Nova Viçosa, a temporadas urbanas. Na última década, seus
amigos criam uma associação independente, a
Associationt des Amis de Frans Krajcberg, que expõem as obras que Frans doa para o
Espace Krajcberg. A Prefeitura Municipal (
Mairie de Paris) e a Fundation Yves Rocher apoiam a iniciativa.
Naturalizado
brasileiro desde a década de 1950, é um dos mais brasileiros entre os
artistas e, certamente, um dos que melhor o representa. Nada irrita mais
Frans quando se o apresenta como
um artista polonês. Em
verdade, raros os artistas brasileiros que lutam, incondicionalmente,
pela natureza do Brasil. Daí, poucos compreenderem o seu caráter
irascível, a determinação absoluta e os princípios inegociáveis,
decidido a fazer exclusivamente o que acredita.
Frans Krajcberg em coleta de materiais para sua arte.
5. O viajante naturartista – 1970 – 1984
Todo mundo fala Brasil!,
mas ninguém conhece este país! [KRAJCBERG,
Depoimento ao autor, maio 2011]. Desde o início da década de 1970,
Frans acompanha, irrequieto, a aniquilação total da Mata Atlântica. Em
1985, registro em meu diário:
Frans
se mostra mais triste – ele me confessa que gostaria de realizar seus
grandes sonhos de viajar sem cessar pelo Brasil, numa Kombi-casa ou num
barco pela Amazônia, e se isolar. (…) mas não conseguiu ajuda, ninguém
ajuda… [KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985, p. 15].
Na
década de 1960 e 1970, viaja longamente pelo país. Encanta-se com o
antigo casario de São Luís, no Maranhão, mas é aos manguezais de
Vicçosa, às formações rochosas espetaculares do Parque Nacional de Sete
Cidades, no Piauí, e às terras ferruginosas e coloridas de Itabirito,
Minas Gerais, que dedica maior atenção. Em relação a Minas Gerais
comenta –
Eu esperava horas a terra arrebentar, eu me sentia parte da Natureza! [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985].
Em outro momento, assevera,
Eu
trabalhei vários anos em Minas Gerais, uns 3 a 4 meses por ano. Eu
acampava nas montanhas e, sem dúvida, adorei as paisagens e o clima de
lá. (…) Comecei com as flores secas, e isso foi descoberto tão rápido,
que eles vendiam nas praças das cidades, ou seja, os caboclos captavam a
minha arte. [KRAJCBERG, depoimento ao autor, fita 5b, 1985].
O
Parque Nacional de Sete Cidades, no município de Piracuruca e vizinhos,
no Piauí é indicação de Zanine Caldas, que trabalha neste parque criado
em 1961. Em Minas Gerais reside isolado, buscando conhecer os
diferentes pigmentos resultantes do solo ferruginoso.
No final da
década de 1970, com mais de 50 anos, descobre a Amazônia; e, daí em
diante, esta será o centro primário de suas atenções. É para a Amazônia
que realiza suas expedições de coleta e pesquisa nas próximas duas
décadas. É para a Amazônia que seu manifesto se dirige, o manifesto da
Amazônia em seu contexto planetário.
Com o amigo Sepp Baendereck
(1920-1988), realiza longas viagens pela região e pelo Pantanal
Matogrossense. Estas ocorrem entre 1976 e até a morte de Sepp, em 1988.
Brigam o tempo todo e um reclama do outro sobre qualquer tema, mas
seguem viajando juntos, disputando as melhores fotografias, o melhor
lugar no barco etc. Se Frans adquire uma máquina fotográfica de última
geração, Sepp obtém uma ainda melhor… Frans é mais ousado e irrequieto,
não tem limites; Sepp raramente se arrisca a sair da trilha, da estrada
ou do barco.
A cineasta paulista, Regina Jeha, companheira de
Sepp, acompanha-os em algumas viagens ao Pantanal e Amazônia. É Sepp
quem financia as viagens. Ele, um bem-sucedido publicitário, compra um
antigo contratorpedeiro da II Guerra Mundial (similar ao
Calypso, de Cousteau), o
Juruena, e o transforma em iate de lazer. Nas primeiras expedições, de barco regional ou no
Juruena, sobem o Rio Amazonas, o baixo Rio Negro, o médio Solimões e o alto Purus.
Em
1978 é a vez da dupla levar um amigo a uma viagem ao Rio Negro.
Trata-se de Pierre Restany, um dos maiores críticos de arte e, naquele
momento, na revista de Franco Maria Ricci.
O
Restany já tinha feito um prefácio para meu catálogo em uma exposição, e
essa foi a primeira vez que ele percebeu a riqueza de nossa conversa,
então na viagem para a Amazônia ele já me conhecia um pouco. Por
exemplo, a fotografia, que eu já fazia muito, ele percebeu a importância
dela e começou a fazer também. Mas esse acontecimento foi ao acaso.
Porque ele me via vibrar (com a fotografia) e começou a
entender e vibrar também. No fim, discutindo sobre a crise da arte e
tudo isso, de repente ele falou que ia fazer um manifesto [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Em agosto de 1978, Restany escreve:
Nós
subimos toda a bacia do alto Rio Negro, a Noroeste do Amazonas, Frans
Krajcberg e eu mesmo, em companhia de Sepp Baendereck. Foi então que eu
redigi o Manifesto do Naturalismo Integral, e Frans percebeu
antes de mais nada essa mensagem da natureza como uma disciplina do
pensamento, uma reordenação do espírito e dos sentidos em relação ao
espaço-tempo mecânico da civilização urbana [KRAJCBERG, 1987, p. 13].
O
Manifesto do Naturalismo Integral também é conhecido como
Manifesto do Rio Negro.
O texto em Língua Portuguesa, na íntegra, encontra-se ao final deste
ensaio [ANEXO 2]. O original é escrito em francês, língua materna de
Restany –
Manifeste du Rio Negro du Naturalisme Integral.
No início da década de 1980, Frans retorna, sozinho, a Belém para realizar trabalhos com cipó, especialmente em cipó-titica (
Heteropsis sp.). Em 1984, procuro Sepp para saber por que seu barco se chama
Juruena. Imediatamente,
este me apresenta Frans. Sucede um intenso período de aprendizado,
viagens, discussões sobre arte e natureza, que mudam a minha vida.
Acompanho Frans em viagens a Nova Viçosa, ao Lagamar (com Rodrigo
Mesquita) e, principalmente, a Juruena, no norte de Mato Grosso.
Em
1984, quando o conheço, depois de Frans viver mais de três décadas no
país, ele ainda se incomoda por ser pouco reconhecido nesta terra.
Acredita que somente na Europa o valorizam por sua arte. Em 10 de julho
de 1985, comenta:
Agora que eu
tenho sessenta e quatro anos, eu ainda não consegui realizar o sonho de
me isolar e ser dono do meu nariz. Eu ainda preciso fazer obras pra
vender e me sustentar, e o pior é que não sou um artista bem cotado no
mercado. Anoto: ele ficou muito triste [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985].
6. O Ciclo Juruena – 1984 – 1988
Quiçá,
a face menos conhecida da vida de Frans Krajcberg seja a de suas
expedições a Juruena, no noroeste de Mato Grosso e a associação a suas
artes plásticas e manifestos. Afinal, depois deste período, Frans não
mais viaja para pesquisar e coletar materiais, a não ser para realizar
exposições e propalar o seu manifesto – o grito em prol da natureza – em
conferências e eventos a que é convidado no mundo todo.
O
registro sobre este período em Juruena é precário e escasso. A maior
parte dos livros, artigos ou informes são imprecisos, incompletos e, por
diversas vezes, incorretos, sobre este conjunto de expedições e uma
residência de alguns meses em Juruena. Em verdade, o Frans que
reconhecemos é o Frans do
Ciclo Juruena. A minha compreensão é que, aos 63 anos, encontra em Juruena a força para seu momento de maior criação e reflexão mais profunda.
A viagem à fronteira pioneira, ao
Brasil Queimado,
provoca-o (incendeia-o e o chamusca) de tal maneira, que sua obra se
consolida e alcança o apelo internacional que almeja. Até então, a
Amazônia que conhecera era a Amazônia Fluvial, em certa maneira, idílica
e bucólica, com apenas feridas, aqui e ali, na floresta. No norte de
Mato Grosso, e nos percursos até Juruena, verá a destruição em grande
escala, o corpo da Amazônia queimado; e, mais, conviverá com este
processo, diferentemente do papel de espectador-contemplador nas viagens
fluviais na década de 1970. Em Juruena ele age, entra na mata, na
queimada, busca objetos, fotografas, participa do processo criativo com a
Natureza.
É o
Ciclo Juruena que lhe permite discutir, na
escala planetária, a relação Homem e Natureza, apresentar o seu
manifesto, sem peias ou redomas. Frans impinge ao brasileiro
A Queimada
como a marca que forja o Brasil – a ferida que nos expõe. A marca que
explica a história da ocupação do país, tal qual o ferro a fogo marca o
couro do gado – este tem dono!
Em tempo, uma das primeiras obras
de arte, quatrocentos anos antes, nos moldes europeus, de outro Frans, o
holandês Frans Post (1612-1680)
[vii] retrata em
Gezicht op Itamaracá
(Vista de Itamaracá) uma encosta litorânea em Pernambuco, desmatada e
ferida com uma imensa erosão (voçoroca) [MEIRELLES, 2014, p.220].
Frans nos exige enxergar como banalizamos e ignoramos
A Queimada. Quão é importante para nós, brasileiros, subjugar a floresta, controlar a natureza, a
queimada
como meio, caminho. E, como, neste processo, relevamos a presença dos
povos originais e das populações tradicionais, como desperdiçamos a
madeira e os recursos naturais. Depois de conhecer a obra de Frans,
ninguém sentirá
A Queimada da mesma maneira.
***
Importa
compreender o contexto do extremo noroeste de Mato Grosso no início da
década de 1980 para situar sua intervenção. Desde o início da ditadura
civil-militar, esta região está destinada a ser uma das fronteiras
pioneiras de ocupação da Amazônia, por meio de empreendimentos de
colonização de grande porte, a partir de Cuiabá, envolvendo milhares de
famílias. Os projetos públicos recebem beneficiários da reforma agrária;
e, os privados, além deste público, atendem, principalmente, migrantes
do Sul do Brasil,
colonos, que vendem seu pequeno lote de terra para adquirir uma área bem maior [MEIRELLES, 2007].
Entre
os projetos de colonização privados, estão os de Juruena e de
Cotriguaçu-Juruena, iniciados no fim da década de 1970 e início dos anos
1980, respectivamente. Estão a cargo da empresa Juruena Empreendimentos
de Colonização Ltda., dirigida por meu pai, João Carlos de Souza
Meirelles.
Como se trata de região de floresta tropical, com
grande estoque madeireiro, a indústria de processamento de madeira
também instala suas serrarias e laminadoras nos núcleos pioneiros, e sua
venda contribui para financiar o desmatamento dos lotes rurais e
dinamizar a economia desde o inicio de sua interligação com o Sudeste do
Brasil, seu principal mercado.
***
Em setembro de 1984,
Sepp Baendereck e Frans Krajcberg e eu organizamos uma primeira viagem a
Juruena. De Cuiabá, são cerca de duas horas em monomotor, sobrevoando
uma região ainda coberta de florestas, com raras estradas e campos de
pouso. Além de percorrer as estradas e os núcleos pioneiros da
colonização, as nascentes cidades de Juruena e Cotriguaçú, ainda
visitamos Aripuanã. Ali está, no Rio Aripuanã, o Salto de Dardanelos (ou
das Andorinhas), com cerca de 100 metros de altura, hoje destruído por
uma usina hidrelétrica.
A partir desta visita, deslumbrado pela
beleza da floresta e, ao mesmo tempo, chocado com as queimadas e o
desprezo pela madeira, Frans decide instalar uma base de trabalho em
Juruena. Realizará expedições anuais de pesquisa e coleta entre 1984 e
1988, com uma residência maior em 1988.
Contribuo apoiando sua
iniciativa, porém, o mérito deste préstimo ao seu trabalho, é de meu
pai, com a cessão de moradia, galpão para atelier, guarda de material,
veículo de apoio e transporte, segurança entre outros. Sem esta guarida,
sua estadia seria impossível, na medida que, localmente, é visto como
um gringo lunático e mal humorado, que impede as pessoas de queimar e
decidir o que fazer com sua madeira.
Em 1985, Frans retorna a
Juruena, agora por via terrestre. Acompanho-o nesta expedição, assim
como um jovem assistente de Nova Viçosa. Em uma velha camionete Ford,
ano 1979, percorremos 3.216 quilômetros do Rio de Janeiro a Juruena. No
caminho, passamos por Lavras e Formiga, em Minas Gerais; Goiás e, no
Mato Grosso, Rondonópolis, Cuiabá, e seguimos pela BR-365, alcançando
Vilhena, em Rondônia e, deste ponto, retornando ao Mato Grosso.
Registro em meu diário:
2
de agosto: De Vilhena a Juruena são 400 quilômetros e só se passa por
uma cidade, Juína, e um vilarejo, Castanhal. O tráfego que no asfalto
era ocupado por caminhões com mudanças, bebidas, transportes gerais para
o norte, e madeira serrada e em tora e, eventualmente, algodão e banana
para o sul, agora era substituído por caminhões e caminhões só com
toras, e subindo mudanças, serrarias, motosserras, tudo em função da
destruição [KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, p. 42].
Em
1986, o cineasta Walter Moreira Salles Júnior (Waltinho)(1958- )
acompanha nova expedição de Frans a Juruena para realizar o documentário
Krajcberg – o Poeta dos Vestígios. Em 1987 este é exibido em horário nobre, com 45 minutos, na extinta TV Manchete, produtora do vídeo
[viii]. Frans ainda trabalhará em Juruena até 1988. Neste mesmo ano, morre seu grande amigo, Sepp Baendereck.
Do
ponto de vista pessoal, é um período de grande sacrifício,
especialmente naqueles momentos em que está praticamente só com o
ajudante, e permanece semanas, senão meses, em processo de visitas
diárias a campo. O calor amazônico e das queimadas ainda fumegantes; os
insetos, em especial o minúsculo pium (
Simulium pertinax),
equivalente ao borrachudo, em ataque incessante durante todo o dia; as
longas distâncias e a precariedade das estradas, o desconforto dos meios
de transporte; a alimentação inadequada, de baixa qualidade e
irregular; as dificuldades de moradia e local de trabalho em uma vila
pioneira; enfim, um conjunto de fatores torna este período um desafio a
qualquer indivíduo. Nada se compara, entretanto, à apatia e, na maioria
das vezes, animosidade dos novos migrantes desta nova fronteira, os
colonos, diante do projeto artístico e os propósitos ambientalistas de Frans.
Depois deste
Ciclo Juruena,
Frans não realizará mais viagens de coleta, a não ser localmente, em
Nova Viçosa ou, rápidas visitas a Minas Gerais. Quatro anos depois, em
1994, retorna brevemente à Amazônia, ao Acre. Viagem tumultuada e que o
encoleriza e entristece, tal o descaso da pecuária e colonização que ali
encontra, certamente, muito similar à que vira no norte de Mato Grosso.
BAENDERECK, Sepp. Retrato de Frans Krajcberg. Nanquim sobre papel, s/dim. Coleção Regina Jeha, São Paulo, SP. 1980.
7. A arte de andar no mato
Em 1985, registro nosso trabalho em campo:
Q
uatro
de agosto: Acordamos às seis horas e preparados os equipamentos
aceleramos o carro rumo à cidade. O objetivo seria reconhecer as matas
da Purunga[ix].
Logo ao lado da pista deixamos o carro e nos embrenhamos na mata da
esquerda. Frans vibrou com as árvores. E começamos logo a trabalhar a
serra, o machado e o facão. Cortamos palmeiras de tucum que para ele
servirão de paus para escultura. Eu cheguei a chorar de alegria, de me
ver, ali, suando, junto à floresta, retirando-lhe o que meus olhos e
coração acreditavam ser de mais belos e expressivos. Frans,
agitadíssimo, andava para lá e para cá, olhava muito, pensava, gastou
filmes com alguns pequenos detalhes e se satisfez imenso. O Zé
trabalhava sem parar, derrubando pequenas palmeiras que Frans escolhia.
Eu também trabalhava na derrubada e corte das palmeiras. Encontramos
cipós, não os excepcionais
como quer Frans, mas belos
exemplares. (…) com o suor o mosquito pium trabalhou incessante. Hoje
introduzíramos as luvas no nosso vestuário. Mas o rosto foi severamente
castigado.(…) Fiquei com o rosto deformado de tantas picadas. (…) Saímos
do mato às cinco horas e fomos ao porto. Belo anoitecer! Jantar e
gravações. Frans, entusiasmado, falou por meia hora sobre a viagem. A
principal mensagem: o Brasil está em decadência, tudo está sendo destruído, cercado, queimado! [KRAJCBERG
in MEIRELLES, diário 1985]
Frans,
carrega as pesadas máquinas analógicas, puxa um cipó para ver sua
resistência, sorri ao encontrar uma flor quase imperceptível no tronco
caído; o calor e o atazanar orquestral dos insetos – piuns, carapanãs,
mutucas e vespas pouco o incomodam.
Na queimada a prova é ainda
maior. Vasculha o espólio de troncos que ainda respiram, exalando forte
odor e um chiado ácido; são árvores peladas pelo fogo… Pisa no chão
recém-queimado, a sola de borracha gruda no carvão, enquanto protesta e
vibra com os encontros de formas inusitadas. está em seu meio, e é capaz
de resistir, usando o machado, carregando troncos e observando as
cascas retorcidas pelo calor ingente. Noutro trecho, aponto:
Quinta,
7 de agosto, (…) adentramos o pasto queimado para tirar uma grande
destas palmeiras barrigudas. (…) Fotografamos queimada e detalhes de
plantas. No caminho reparamos em cipós que começamos a tirar. Eles
estavam pendurados lá em cima. O Zé subiu dez metros e triscou a serra.
Alguns pedaços de cipó eram tão pesados que necessitavam de três pessoas
para carregar. Andamos na mata, sem querer, deparei-me com um belo
cipó-verdadeiro. Frans abriu o sorriso e disse: Que descoberta! Que maravilha de cipó!
E só deste nós tiramos bem uns dez pedaços para trabalhar. Mas o que Frans está interessado é nas baxiúbas[x] e nas sete-pernas.(…) E quanto aos sete-pernas ele quer pintar: Quero cores, cores vivas, fortes, muitas, cores brutas, quero ocupar com vinte, trinta delas
.
É hoje que a gente encontrou coisa bonita, mas o mosquito era demais,
chegou uma hora que não aguentei mais foi preciso voltar [KRAJCBERG
in MEIRELLES, diário, 1985].
***
Acompanhar
Frans na mata, em sua caçada pela forma natural é, ao mesmo tempo, aula
de meditação, estética e prova de vigor físico. Em verdade, o principal
resultado é a profunda e permanente transformação de nossa percepção.
Nos oito anos anteriores a esta viagem, ainda que houvesse percorrido
dezenas de vezes as florestas de terra firme do Rio Juruena
(principalmente as florestas ombrófilas abertas), Frans revela-me uma
paisagem incrivelmente nova, jovem e vibrante, que jamais concebera.
Aprendo a observar a luz incidindo sobre a folha, as riscas do inseto
nas folhas apodrecendo, a maneira que o galho está cortado, as ondas que
o cipó faz no ar… Cada detalhe merece atenção e, principalmente,
respeito.
É preciso paciência e atenção; há mensagens impressas em
toda parte – em troncos, nas raízes… Esperar que o raio solar volte a
se projetar sobre o chão, coberto de flores; aguardar para que estejamos
familiarizados com o lugar, e possamos ver as árvores tocando uma
sinfonia, num arranjo orquestral com centenas de cordas, sopros,
percussão e vozes. A partir deste momento, compreendo que é preciso de
novas palavras para representar a nossa experiência na floresta, uma
nova maneira de libertá-las de uma visão apenas horizontal. Como vim a
aprender posteriormente –
diante das pedras, as árvores são bailarinas.
Neste processo, a nova percepção não se resume ao detalhe, ao que a fotografia denomina, curiosamente, de
macro. A
paisagem passa a ser outra. Se eu fora treinado por uma linha
utilitarista e empresarial; e, num segundo momento, para um olhar
conservacionista, o que Frans oferece é uma dimensão amorosa, onde o
olhar artístico é a trilha para a compreensão de nosso papel no planeta.
Passo a pedir licença para adentrar na floresta, a grande catedral
viva, a encará-la com serenidade e respeito, capaz de imensas trocas e
aprendizados.
E, aqui, preciso recorrer às belíssimas reflexões de meus amigos, Zysman Neiman e Rita Mendonça:
Quando
entramos em uma área natural quase sempre nos sentimos bem, percebemos
que alguma coisa muda. Quanto mais nos aprofundamos nessa relação, nessa
intimidade com os elementos naturais, percebemos que ali há uma grande
escola que nos proporciona uma das raras oportunidades que temos para
realmente evoluir [ZYSMAN & MENDONÇA, 2000, p.99].
A partir desta vivência, compreendo o Manifesto
Natura
como a busca por superar a argumentação sectária, ora ecológica, ora
social ou puramente utilitarista. A proposta de Frans é a experiência
estética libertadora de primeiro grau; e, se possível no mais fulgurante
dos ambientes naturais – a floresta tropical –; que esta experiência se
converta em manifesto em prol do repensar a relação com a natureza, que
seja capaz de sensibilizar a humanidade para o concerto-conserto de
conservação-conversação planetária.
Novamente recorro a Rita Mendonça e Zysman Neiman, que perguntam sobre as florestas:
Que
seria de nós se não a tivéssemos perto ou longe, para nos dar a
esperança de um dia nos tornarmos dignos de nossa rica experiência
humana? A floresta simboliza o próprio processo de aprendizado da vida.
Ela dá sentido às atividades humanas. Ou melhor, ela nos faz questionar o
sentido do que fazemos [ZYSMAN & MENDONÇA, 2002, p.2].
8. A arte bruta natural, é nisso que eu quero chegar
Frans
labuta incessantemente. No galpão, seleciona o material, corta as
partes da madeira que não o atraem ou não suportarão o manuseio; expõe o
tronco ao fogo, amarra galhos para que retorçam e verguem, estica-os ao
limite e os deixa ao sol. Não há desenhos, planos, ele simplesmente
compõe a sua escultura com o que dispõe, segundo a resistência do
material que descobre na queimada ou na floresta.
Ele
só está preocupado com a natureza, não quer ver boi, pasto, plantação;
quer pegar plantas novas, fotografar, encontrar material para trabalhar e
ficar em lugares quietos, isolados, onde possa desenvolver sua criação.
Ele mal se lembra dos roteiros de suas viagens, do nome das cidades,
das coisas, lembra-se, porém, de cada fotografia, da condição em que as
tirou [KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985, p. 11].
Depois
de meses enfurnado no mato, volta ao estúdio em Nova Viçosa, na Bahia,
levando um grande carregamento de pedaços desprezados da floresta
queimada. Ali expõe os cipós no chão, buscando compor a nova obra,
estuda-lhe o suporte ideal – se painel para a parede, se escultura que
recebe uma base, ou outra forma. É um exercício permanente de combinar
cascas, cipós, troncos, formas, cores, espaços. Prefere as cores fortes e
contrastantes – o negro e o vermelho, o vermelho e o branco, o branco e
o negro. Em 1984 planeja:
Agora eu
gostaria de entrar em uma forma mais bruta, eu acho que tou entrando um
pouquinho no bonito no meu trabalho… Começar a agradar, e eu não gosto
disso. Gostaria mais de ser EU como eu sou, o impacto da arte bruta. A
arte bruta natural, é nisso que eu quero chegar agora. [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1984].
Em
fases posteriores, como a que hoje se encontra, outras cores e
combinações são experimentadas e o próprio verde também aparece. Se os
primeiros pigmentos são apenas os naturais, o que se busca agora, é
impregnar de cores fortes e marcantes. Se a projeção da sombra já é
parte da escultura, é com o
Ciclo Juruena que a sombra alcança sua maioridade.
Em 1986, como parte do
Ciclo Juruena executa
o que, provavelmente, seja sua obra mais marcante. Esta passa
desapercebida pela maioria das dezenas de milhares de pessoas que
circulam todo os dias pela Avenida Paulista, em São Paulo. Ali, no foyer
externo do prédio de um banco, o Citibank, no número 1.111, está uma de
suas obras de maiores dimensões (com cerca de 14 m de altura). Trata-se
de um imenso cipó, pintado de branco, projetando uma sombra, também
branca. O branco vela o negrume das árvores queimadas. A sombra
artificial, mostra-nos a projeção que permanecerá, para sempre, naquela
parede, como a indicar que o tempo parou no momento da queimada, tal
qual o relógio que não despertou de Hiroshima.
Talvez, seja esta a
obra de arte brasileira que melhor trate o triunfo do homem sobre a
floresta, o que se coaduna perfeitamente ao cenário que se instala – a
Avenida Paulista –, símbolo do poderio financeiro no Brasil, na cumeeira
da maior cidade do Hemisfério Sul, outrora um manto de Mata Atlântica.
***
Frans
passará as próximas três décadas e, até o presente, combinando formas,
cores, madeiras, troncos, raízes, cascas, a partir da coleta em Juruena e
Nova Viçosa.
Em sua vida, terá poucos colaboradores. Zé do Mato
(José Alves) ocupará, como assistente por décadas, desde Minas Gerais,
onde Frans o conhece moço, até a década de 2010. Frans contará, ainda,
com a grande atenção de Márcia Barrozo do Amaral, da Márcia Barrozo do
Amaral Galeria de Arte, do Rio de Janeiro, que representa sua obra e que
publica quatro livros sobre Frans
[xi]
e acompanha sua saúde; de sua vizinha em Nova Viçosa, Lú Araújo e sua
família, da Pousada Cheiro de Mar, sempre atenciosos e preocupados; de
Ernani Grifo Ribeiro, seu advogado; e, de amigos que o auxiliam nos
momentos que está debilitado, como a empreendedora cultural e
empresária, Maria de Lourdes Egydio Villela (Milu Villela), entre
outros.
Na medida que sua obra se torna valiosa, Frans é imitado,
obras são falsificadas, e marchands desqualificados como seus
representantes. Em poucos anos, sofre oito roubos em seu sítio e, em um
deles é agredido. Em 2008, será envenenado, o que leva a sérias
complicações de saúde e a longa internação. Nada disto o esmorece em sua
luta para que se reconheça a sua mensagem, o seu manifesto.
A
partir da década de 1990, no Brasil e em diversos países, empregará a
palavra em eventos sobre meio ambiente, projetará a sua fotografia em
diapositivos, em exposições, apresentando-as em grande formato, sempre
como manifesto. Como ambientalista ferrenho, arregimenta legiões de fãs,
pela
inconcessão sobre o ato de destruir e abandonar, algo
bem-Brasil.
Mesmo com dificuldade de se expressar, é o seu tom de voz e a sua
linguagem corporal são suficiente para passar a sua mensagem de
indignação.
Como
enfant terrible, está sempre medindo o
impacto de suas ações. Se está sendo entrevistado, depois me olha para
saber se foi suficientemente duro e direto. Da mesma maneira, quer saber
quando sua escultura
começa a agradar, porque desconfia do
bonitinho, seu desejo é:
Eu quero art brut
[xii],
nova… lá na sua terra, Juruena…, é capaz de a gente conseguir material
de queimada. Você imagina um conjunto desta paxiúba, umas vinte, que
beleza, e estas outras raízes, estas cascas de árvore! [KRAJCBERG
in MEIRELLES, diário 1985, p. 13].
Receberá
os mais importantes prêmios, condecorações e será cidadão honorário de
diversas partes, no Brasil e no exterior. Frans constrói uma obra
monumental que, provavelmente, ainda seja mais conhecida e valorizada no
exterior que no Brasil. Entretanto, a sua posição permanece inalterável
– um homem simples, de hábitos monásticos e cujas decisões são radicais
e, raramente revistas. Em recente encontro me confessa:
Eu
estou apaixonado em descobrir a natureza, meu grande desejo foi sempre
fugir do homem; e eu, descobrindo a natureza, vi que a natureza está
muito ligada comigo, ela me transmite a maior tranquilidade. Eu estou
vendo esta bolinha tão frágil[xiii],
está girando muito rápido (..
.) [KRAJCBERG, depoimento ao autor, julho, 2011].
9. Eu não sou fotógrafo
Eu não sou fotógrafo. (…) Tento fotografar aquilo que o homem não vê [KRAJCBERG, 2011, s/n]. Esta é a epígrafe do livro Natureza.
De fato, sua fotografia não serve de recamo ou ornato. É parte
integrante desta caça pela forma – uma lente que lhe permite ampliar o
olhar. É ferramenta. Frans não vende fotografias, como faz com as
esculturas e os painéis.
Seu primeiro livro com fotografias é de
1981, sobre São Luís. O texto deveria ser do poeta maranhense Ferreira
Gullar (1930- ), mas a Rhodia, a empresa patrocinadora, não o aceita.
Considera Gullar comunista. O livro sai com o texto de Luiz Antônio
Seraphico de Assis Carvalho (1936-2012), que trabalha no marketing desta
empresa.
Do Ciclo Juruena em diante, sua fotografia passa a ser exposta com as esculturas, ocupando, cada vez, maior espaço. Com a fotografia começo a captar outra natureza, que os olhos não percebiam [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1986].
A
partir deste momento, a fotografia se torna ativista. Por meio da
fotografia Frans revela ao brasileiro (e ao mundo) a queimada. É por
meio da fotografia que descobrimos o fogo e a queimada na arte
brasileira.
O primeiro livro exclusivamente dedicado a sua fotografia é
Natura,
de 1987. É iniciativa da Editora Índex, de José Paulo Monteiro Soares e
Cristina Ferrão, com o apoio do Chase Manhattan SA. As fotografias de
Frans cobrem a região de Nova Viçosa; as terras de Itabirito, em Minas
Gerais; o Parque Nacional de Sete Cidades, Piauí; o Pantanal, em Mato
Grosso; o Rio Negro, no Amazonas; e, as expedições mais recentes, como
as de Juruena, no Mato Grosso.
Os textos são de Antonio Houaiss,
Pierre Restany e colaboro com uma breve biografia. Uma ação pioneira da
empresa destina dois mil livros à Fundação Brasileira para a Conservação
da Natureza (FBCN), com o Almirante Ibsen de Gusmão Câmara (1924-2014)
prefaciando a obra. Seguem-se outros livros de fotografia, mas,
certamente este foi impecável na seleção e edição de imagens.
No livro de 2011,
Natureza, publicado pelo Governo da Bahia, Thiago de Mello apresenta poema inédito sobre Frans:
Este Livro é uma estrada, um farol.
É uma advertência corajosa.
Um chamado.
O crítico baiano J. Antônio Saja comenta que se trata de
156 fotoesculturas [SAJA
in KRAJCBERG, 2011]
A fotografia ocupa um
crescendo
em sua vida, ajuntando uma coleção que este crê ser de dez mil imagens
(especialmente em função da fotografia digital, este número é,
certamente, muitas vezes esta cifra). Frans depõe:
Eu não fotografo o objeto, eu fotografo a luz no objeto [KRAJCBERG, Depoimento ao autor, maio, 2011]. Em outro momento, Houaiss comenta uma exibição de slides de Krajcberg:
Compreendi
naquela oportunidade, mais do que em qualquer outra de minha vida, a
diferença entre ver e ver. E vi – com (suponho) lucidez – que este bicho
que somos, tão pequeno, tem sabido fazer de sua animalidade, pouco a
pouco, uma outra coisa, fazendo dos olhos órgãos que vêem mais do que o
mero ver animal (…) [HOUAISS, A., in KRAJCBERG, 1987, p. 16-7].
Visão esta que Pierre Restany comenta:
para
Frans Krajcberg, a fotografia sempre foi um suplemento da alma do
olhar, a prova e a justificativa do potencial infinito da visão [RESTANY, P.,
in KRAJCBERG, 1987, p. 13-5].
Por fim, num transe de genialidade e humildade, Antonio Houaiss revela:
Não sei como ler
melhor a obra de Krajcberg. Mas sei que agradecer-lhe o que tem feito
por todos nós é dever de quem sabe, ademais, amar os artistas, as suas
obras e os seres viventes [HOUAISS, A. in KRAJCBERG, 1987, p. 19-20].
Se
próximo dos noventa anos as esculturas deixam de ser a arte de um só
homem, pois agora orienta sua equipe de assistentes como cortar, pintar e
montar; a fotografia, entretanto, passa a ocupar boa parte de seu dia,
seja percorrendo o seu sítio à busca de flores, troncos e expressões que
hoje se apresentam distintas de ontem, seja sentado, por horas, diante
do computador, assistido por Marlene Figueiredo, ao viajar por suas
coleções de fotografias, selecionando um novo livro ou material para uma
exposição.
10. O desafio – como criar A Expressão Brasileira?
Frans está em permanente questionamento sobre o papel da arte e do artista. Interpõe mais perguntas que respostas:
O artista que fica na cidade, só defronte da prancheta, é capaz de criar algo decente? Como se poderia criar A Expressão Brasileira? A Arte Brasileira de hoje? (como fazer isto) num país que só se destrói? Que os artistas estão omissos? Que não percebem esta destruição? [KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985].
A partir do exemplo de grandes mestres, mostra que:
É
preciso muito sacrifício para fazer arte. Brancusi foi a pé da Romênia a
Paris, por falta de recursos; o outro comprava galinha para pintar e
depois as comia, quase podre.(…) [KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985].
E prossegue na sua proposta da nova arte bruta –
estou
cansado de blá-blá-blá; eu, cada vez mais, acredito no discurso duro,
verdadeiro, incisivo; é preciso, assim, atingir o belo, a perfeição [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985]. E se pergunta:
Qual
o jovem que acredita, realmente, na natureza deste país? Todo mundo
prefere ficar no eixo Rio – São Paulo, copiando o que se faz no
exterior, e como mal copiadores, pois tudo lhes chega apenas fragmentado
(…). João, é preciso que você seja mais picante, procure mais a
realidade, dura, cruel, como ela é, não seja tão generalista [KRAJCBERG in MEIRELLES, diário, 1985, p. 14].
Ao unir arte e defesa da natureza integral, seu dístico (que ouvirei centenas de vezes) é:
vocês
não sabem o que está acontecendo com a Amazônia! O Brasileiro não tem
nem o direito de falar da Amazônia, nem conhece o Brasil! [KRAJCBERG,
depoimento ao autor, 1985]. Neste sentido, percebe-se, que o seu tempo é
dedicado integralmente em prol da arte; inexiste desperdício de gestos,
palavras, elogios… A ironia e a sutileza estão a serviço de algo maior –
o encontro do homem e a natureza. Cada frase é um petardo contra o
imobilismo:
A natureza é a
minha cultura. É ela que me dá o desejo de viver. Muitas vezes o
diálogo é mais rico com a natureza que com os homens. Um pedaço de pau
no meio do mato chega a me dizer mais que algumas pessoas [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 1985].
Quer uma arte que faça pensar, um soco na cara! Uma arma contra a hipocrisia: O grito, a barbárie, a ferocidade, a indignação, tem que usar a palavra pesada, para sacudir a paciência [KRAJCBERG, depoimento ao autor, 2011].
Em maio de 2011, em comemoração aos seus 90 anos, Thiago de Mello escreve a Frans um poema –
Amor, assombro e fúria – e nos conclama a reconhecer a beleza de sua atitude-vida:
Frans atendeu o chamado
e entendeu o seu destino
que perseverante cumpre
com amor e indignação
[KRAJCBERG, 2011, p. 113].
Nesta ocasião, de improviso, Thiago declama:
Tem o poeta da Imagem e da Palavra
Poesia da Palavra tem que pensar.
A Poesia da Imagem fala diretamente à tua inteligência. Frans é poeta da Palavra e da Imagem
[MELLO, depoimento ao autor, 2011].
***
Mesmo
diante desta trajetória única na arte brasileira, é preciso arregaçar
as mangas, pois há muito a fazer para assegurar sua mensagem. Em
primeiro lugar, é urgente o preparo de um catálogo completo de suas
obras – um
Catálogo Raisonée – , para que não paire dúvidas do
que é fruto de seu labor e o que é cópia e falsificação. E que, o mais
breve possível, este catálogo esteja disponível publicamente em meio
eletrônico.
Em segundo lugar, a decisão do Governo da Bahia, de criar a Fundação Museu Frans Krajcberg, que terá espaços no
Sítio Natura,
em Nova Viçosa e no Alto de Ondina, Salvador, por sua magnitude, merece
amplo louvor, apoio, reconhecimento e divulgação. Que se aproveite para
ampliar o debate da sociedade baiana e brasileira sobre a vida e obra
de Frans, para que sua mensagem seja amplificada.
Há iniciativas
inspiradoras no mundo, entre as quais, está a do Museu Andy Warhol, cuja
preocupação de circulação da obra é primordial. Certamente, o amplo
acesso público a sua vida e obra, especialmente de suas fotografias e
vídeos, torna Warhol um artista cada vez mais conhecido, e permite um
debate sobre questões de grande relevância contemporânea levantadas pelo
artista.
Em terceiro lugar, é importante resgatar as propostas
que levaram Zanine Caldas e Frans Krajcberg ao Sul da Bahia, entre as
quais: a de criar uma escola de arte para os jovens; valorizar os
saberes e fazeres tradicionais locais; e, questionar o processo violento
de ocupação e destruição da Mata Atlântica. Será a Fundação Museu Frans
Krajcberg a organização a promover este debate acerca destas três e
outras questões que se afirmam, e formular políticas públicas para que
se avance em realizações concretas?
E, por fim, em quarto lugar, é
importante que a população da Amazônia conheça o artista que tanta
atenção lhe concede. Afinal, nos últimos quarenta anos seu tema
principal e sua área de maior de coleta de matéria prima foi a região.
Entre as distintas maneiras de realizar esta divulgação está a
realização de debates, projeções de filmes, exposições de fotografias e
obras de arte.
Apesar de realizar centenas de exposições em
diversas partes do Brasil e do mundo, Frans nunca expôs na Amazônia.
Outrossim, não há uma única obra de Frans nos acervos de museus e
instituições públicas da região, como existe em São Paulo, Rio de
Janeiro ou Brasília.
Por que não aproveitar as comemorações de 400
anos da cidade de Belém e os 150 anos do mais antigo museu da Amazônia,
o Museu Paraense Emílio Goeldi, em 2016? Não seria este o momento,
quando Frans Krajcberg completa 94 anos, para que sua vida, obra e
manifesto sejam melhor conhecidos pela população da Amazônia, que Frans
tanto defende e respeita?
Fim.
Anexo 1 – Referências bibliográficas
KRAJCBERG, Frans; SERAPHICO, Luiz.
A Cidade de São Luís do Maranhão. Livro desenhado por Emanoel Araújo. São Paulo, SP: Rhodia, 141p. ill. 1981.
_____; HOUAISS, Antonio, RESTANY, Pierre, CAMARA, Alm. Ibsen de Gusmão, MEIRELLES, João.
Natura. Rio de Janeiro, RJ: Editora Index, 142p.: il. ISBN: 857083.016.5. 1987.
_____; HOUAISS, Antonio, PONTUAL, Roberto, RESTANY, Pierre, SALLES Jr., Walter
Frans Krajcberg Natura. Design gráfico: Ruth Freihof. Rio de Janeiro, RJ: GB Arte & MRS Logística. 211p. ill. 2004.
_____.
Natura. 103p.: il. 2008.
_____
Frans Krajcberg – Natura e Revolta. Rio de Janeiro, RJ: GB Arte. 2 vols. 2000. ISBN 8587688030
_____ .
Natureza de Krajcberg. Rio de Janeiro, RJ: GB Arte. 136p.: ill. 2005. ISBN 8587688049.
_____. FK. Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves 2007. 240 p. ISBN 8587688057
http://www.marciabarrozodoamaral.com.br Acesso em 12.1.2015.
_____.
Frans Krajcberg. Grito! Ano Mundial da Árvore. Salvador, BA: Governo da Bahia, Secretaria de Cultura, Palacete das Artes Rodin, 64p.:il. 2011. (catálogo da exposição).
_____ ; MELLO,Thiago, SAJA, José Antonio.
Natureza (inclui poema inédito
Amor, assombro e fúria de Thiago de Mello). Salvador, BA: Governo da Bahia, Secretaria de Cultura, Palacete das Artes Rodin, 211p.:il. 2011.
MEIRELLES
FILHO, João Carlos de Souza (MEIRELLES FILHO, João). Frans Krajcberg:
Sempre fomos ligados a natureza. Nós somos a Natureza. São Paulo, SP:
Jornal da Tarde. 20.6.1985.
_____. Bienal: As Críticas e as propostas de Franz Krajcberg. São Paulo, SP:
Jornal da Tarde. 16.10.1985.
_____. Krajcberg: Luta contra a incredulidade dos homem. São Paulo, SP:
Jornal
da Tarde. 18.9.1986.
_____.
Livro de Ouro da Amazônia. Rio de Janeiro, RJ: Ediouro. 2007. 5
a Ed.
_____.
Grandes Expedições à Amazônia Brasileira, século XX. São Paulo, sp: Editora Metalivros. 2011.
_____.
É possível superar a herança da ditadura brasileira (1964-1985) e
controlar o desmatamento na Amazônia? Não, enquanto a pecuária bovina
prosseguir como principal vetor de desmatamento. Belém, PA:
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. V.9,n.1,p.219-241,jan.-abr.2014
MELLO, Thiago; KRAJCBERG, Frans; MEIRELLES FILHO, João C. S
. Manifesto da Campanha – Grito de Esperança pela Amazônia, uma Carta aberta à ONU pela criação do Ano Internacional da Amazônia. 2011
MOLLARD, Claude; LISMONDE, Pascale.
Frans Krajcberg, La Traversée du feu : Biographie. Paris, França: 2005.
NEIMAN, Zysman; MENDONÇA, Rita.
Ecoturismo: discurso, desejo e realidade. São Paulo, SP: Turismo em Análise. 11 (2): 98-110 novo. 2000.
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À sombra das árvores. Campinas, SP: Editora Chronos, 2002.
RESTANY, Pierre, KRAJCBERG, Frans, BAENDERECK (1978) Sepp
Manifesto do Rio Negro. 3 de agosto de 1978.
SALLES JR., Walter.
Krajcberg: o poeta dos vestígios. Rio de Janeiro: Videofilmes Documentário em Vídeo 45 min (35 mm). 1987.
SCOVINO, FELIPE.
Frans Krajcberg. São Paulo, SP: Editora Arauco. ISBN: 8560983112. 2011. 274 p. 2011.
Anexo 2 – Manifesto da Campanha – Grito de Esperança pela Amazônia
Ref.: Carta aberta à ONU pela criação do
Ano Internacional da Amazônia.
A nossa campanha se inaugura com esta carta em que solicitamos à Organização das Nações Unidas que declare o
Ano Internacional da Amazônia. Trata-se de um gesto de amor.
A
nossa iniciativa atende à necessidade do urgentíssimo respeito que a
Amazônia clama, diante das ameaças cada dia mais graves a seus povos,
suas florestas e suas águas. A Amazônia é a casa de mais de 30 milhões
de pessoas, em seus verdes nove países da América do Sul – Bolívia,
Brasil, Colômbia, Equador, França (Guiana Francesa), Guiana, Peru,
Suriname e Venezuela –, abrigando mais de 400 povos originais, cada
qual com a sua cultura e conhecimentos associados à biodiversidade.
Nos
últimos 50 anos, aumentou substancialmente a pressão sobre os povos
tradicionais e perdemos 1 milhão de km2 dos 7 milhões de km2 de floresta
amazônica (a área desmatada equivale a toda Região Sudeste do Brasil).
Quatro quintos do desmatamento e das queimadas resultam do forte
crescimento do consumo de carne bovina, o que significou, apenas na
Amazônia Brasileira, aumentar o rebanho de 2 milhões a 80 milhões de
cabeças. A Ciência afirma faz tempo que a Amazônia desempenha importante
papel no equilíbrio climático global e, contudo, poderá entrar em
colapso se persistir o processo de exploração desenfreada de seus
recursos.
Em menos de 5% da área terrestre, esta nossa última
grande floresta tropical do planeta, protege mais de ¼ das águas doces
superficiais e 25% da biodiversidade. São mais de um trilhão de árvores
que pedem proteção e inumeráveis plantas e animais, muitas ainda
desconhecidas, porventura de virtudes preciosas.
Se a Amazônia é
reconhecida pela sua relevância ambiental e o potencial econômico de
seus recursos naturais, poucos consideram sua diversidade cultural,
populações tradicionais e as enormes e crescentes desigualdades sociais.
Estas desigualdades resultam em conflitos culturais, conflitos
fundiários, marginalização econômica, desigualdade no acesso a serviços
e, principalmente, o que dificulta populações tradicionais amazônicas de
tomar decisões sobre suas próprias vidas.
Se a concentração do
poder e da riqueza nos nove países amazônicos está entre as maiores do
mundo, na Amazônia esta relação é ainda mais injusta e evidente. O
isolamento e a falta de segurança territorial da maioria dos mais de 6
milhões de índios, quilombolas e caboclos, e da população rural pobre,
aumenta este desequilíbrio.
Não precisamos justificar a proteção
da Amazônia: Só a sua valiosa existência já exige extremo cuidado com a
sua vida, importante para as presentes e futuras gerações! (Falamos em
nome das crianças que ainda vão nascer.) A sua beleza e a sua cultura,
resultante de cem séculos de convívio do Homem com a Floresta, são
valores que exigem cuidado e a sua conservação.
Este manifesto tem
raiz antiga: a dolorosa experiência e a indignação moral pela
destruição de milhões de indígenas e a maior parte dos biomas
brasileiros, entre os quais destaca-se a eliminação de mais de 93% da
Mata Atlântica (que já recobriu 1,5 milhão de km2 do Brasil). Não
podemos aceitar que a floresta amazônica e seus povos tenham o mesmo
destino. É preciso dar fim, em nome da vida e da própria grandeza da
condição humana, ao perverso desmatamento, às queimadas e à poluição
indiscriminada das águas.
Como cidadãos do planeta, sentimo-nos extremamente perplexos com o fato de que a declaração da ONU de 2011 como o
Ano Internacional das Florestas, haja mobilizado tão poucos brasileiros. Por isso que nos reunimos como signatários desta Campanha
, que é também um brado pela conscientização
, e para que a ONU estabeleça o
Ano Internacional da Amazônia.
É
preciso que cada ser humano, reflita sobre o impacto de nossas ações,
fruto da ambição e da cobiça, sobre a Amazônia. Indivíduos, organizações
e países, consideremos a relevância da responsabilidade nossa, de
legarmos às futuras gerações uma Amazônia melhor, mais justa, mais bela e
mais querida do que aquela que recebemos.
O
Grito de Esperança pela Amazônia é um chamado mundial. Vamos dar a nossa voz e gritar pela Esperança. Participe desta campanha e assine a lista abaixo.
5 de novembro de 2011, por ocasião da 3
a Edição do Grito de Frans Krajcberg, pelo Ano Internacional das Florestas, em Nova Viçosa, BA.
Frans Krajcberg, artista plástico, Nova Viçosa, BA
Thiago de Mello, poeta e escritor, filho da floresta, Barreirinha, AM
João Meirelles, escritor e diretor do Instituto Peabiru, Belém, PA
A
carta também foi assinada por diversas pessoas, entre as quais, o
jornalista André Trigueiro, os artistas Christiane Torloni e Vitor
Fasano, a cineasta Regina Jeha, o ambientalista Mario Mantovani, entre
outros.
Anexo 3 – Manifesto do Rio Negro
Que
tipo de arte, qual sistema de linguagem pode suscitar uma tal ambiência
– excepcional sob todos os pontos de vista, exorbitante em relação ao
senso comum? Um naturalismo do tipo essencialista e fundamental, que se
opõe ao realismo e à própria continuidade da tradição realista, do
espírito realista, além da sucessão de seus estilos e de suas formas. O
espírito do realismo em toda a historia da arte não é o espírito da pura
constatação, o testemunho da disponibilidade afetiva. O espírito do
realismo é a metáfora; o realismo é, na verdade, a metáfora do poder:
poder religioso, poder do dinheiro na época da Renascença, em seguida
poder político, realismo burguês, realismo socialista, poder da
sociedade de consumo com a
pop-art.
O naturalismo não é
metafórico. Não traduz nenhuma vontade de poder, mas sim um outro estado
de sensibilidade, uma maior abertura de consciência. A tendência à
objetividade do
constatado traduz uma disciplina da percepção,
uma plena disponibilidade para a mensagem direta e espontânea dos dados
imediatos da consciência. Como no jornalismo, mas sendo este transferido
ao domínio da sensibilidade pura,
o naturalismo é a informação sensível sobre a natureza.
Praticar esta disponibilidade ante o natural concedido é admitir a
modéstia da percepção humana e suas próprias limitações, em relação a um
todo que é um fim em si. Essa disciplina na conscientização de seus
próprios limites é a qualidade primeira do bom repórter : é assim que
ele pode transmitir aquilo que vê –
desnaturando o menos possível os fatos.
O
naturalismo assim concebido implica não somente maior disciplina da
percepção, mas também maior na abertura humana. No final das contas a
natureza é, e ela nos ultrapassa dentro da percepção de sua própria
duração. Porém, no espaço-tempo da vida de um homem, a natureza é a
medida de sua consciência e de sua sensibilidade.
O naturalismo
integral é alérgico a todo tipo de poder ou de metáfora de poder. O
único poder que ele reconhece é o, poder purificador e catártico da
imaginação a serviço da sensibilidade, e jamais o poder abusivo da
sociedade.
Este naturalismo é de ordem individual. A opção
naturalista oposta à opção realista é fruto de uma escolha que engaja a
totalidade da consciência individual. Essa opção não é somente critica,
ela não se limite a exprimir o medo do homem frente ao perigo que corre a
natureza pelo excesso de civilização industrial e a consciência
planetária. Ela traduz o advento de um estado global da percepção, a
passagem individual para a consciência planetária. Nos vivemos uma época
de balanço dobrado. Ao final do século se junta o final do milênio, com
todas as transferências de tabus e da paranóia coletiva que esta
concorrência temporal implica – a começar pela transferência do medo do
ano 1000 sobre o medo do ano 2000, o átomo no lugar da peste.
Vivemos,
assim, uma época de balanço. Balanço do nosso passado aberto sobre
nosso futuro. Nosso Primeiro Milênio deve anunciar o Segundo. Nossa
civilização judaico-cristã deve preparar sua Segunda Renascença. A volta
do idealismo em pleno século XX supermaterialista, a volta de interesse
pela historia das religiões e a tradição do ocultismo, a procura cada
vez maior por novas iconografias simbolistas: todos esses sintomas são
consequência de um processo de desmaterialização do objeto, iniciado em
1966, e que é o fenômeno maior da historia da arte contemporânea no
Ocidente.
Apôs séculos de
tirania do objeto e seu clímax
na apoteose da aventura do objeto como linguagem sintética da sociedade
de consumo – a arte duvida de sua justificação material, ela se
desmaterializa, se conceitua. Os andamentos conceituais da arte
contemporânea só têm sentido se examinados através dessa ótica
autocrítica. A arte é ela mesma colocada numa posição critica. Ela se
questiona sobre sua imanência, sua necessidade, sua função.
O
naturalismo integral é uma resposta. E justamente por sua virtude de
integracionista, de generalização e extremismo da estrutura da
percepção, ou seja, da planetarização da consciência, hoje ela se
apresenta como uma opção aberta – um fio diretor dentro do caos da arte
atual. Autocrítica, desmaterialização, tentação idealista, percursos
subterrâneos simbolistas e ocultistas: essa aparente confusão se
organizará talvez um dia, a partir da noção do naturalismo – expressão
da consciência planetária.
Esta reestruturação perceptiva
refere-se á uma real mudança e a desmaterialização do objeto de arte,
sua interpretação idealista, a volta ao sentido oculto das coisas e sua
simbologia constituem um conjunto de fenômenos que se inscrevem como um
preâmbulo operacional à nossa Segunda Renascença – etapa necessária para
uma mutação antropológica final.
Hoje, vivemos dois sentidos da natureza: aquele ancestral, do
concedido
planetário, e aquele moderno, do “adquirido” industrial e urbano.
Pode-se optar por um ou outro, negar um em proveito do outro; o
importante é que esses dois sentidos da natureza sejam vividos e
assumidos na integridade de sua estrutura antológica, dentro da
perspectiva de uma universalização da consciência perceptiva – o Eu
abraçando o mundo, fazendo dele um uno, dentro de um acordo e uma
harmonia da emoção assumida como a única realidade da linguagem humana.
O
naturalismo como disciplina de pensamento e da consciência perceptiva é
um programa ambicioso e exigente que ultrapassa de longe as
balbuciantes perspectivas ecológicas de hoje. Trata-se de lutar muito
mais contra a poluição subjetiva do que contra a poluição objetiva – a
poluição dos sentidos e do cérebro contra a queda do ar e da água.
Um
contexto tão excepcional como o do Amazonas suscita a ideia de um
retorno à natureza original. A natureza original deve ser exaltada como
uma higiene da percepção e um oxigênio mental: um naturalismo integral,
gigantesco catalisador e acelerador das nossas faculdades de sentir,
pensar e agir.
Pierre Restany
Alto Rio Negro, quinta-feira, 3 de agosto de 1978.
Na presença de Sepp Baendereck e Frans Krajcberg
Anexo 4 – Novo Manifesto do Naturalismo Integral
Le
XXIème siècle n’a toujours pas ouvert la voie à une création artistique
résolument engagée au service de l’équilibre de la planète avec son
environnement et ses habitants. Nous dénonçons cette impuissance.
Ecrasé
par la globalisation des cultures et des économies, l’art perd son
sens, tandis que la domination universelle de la finance génère
spéculations éhontées et bulles artificielles. Nous dénonçons l’emprise
des marchés sur l’art, avec leurs méfaits et leurs impasses.
Nous
lançons un cri d’alarme pour que l’art retrouve le sens de la nature, de
la mesure et de l’harmonie, et qu’il recouvre sa position d’avant-garde
au service de valeurs de liberté, de dignité, de respect.
Nous
publions le «Nouveau Manifeste du Naturalisme intégral » pour entraîner
un mouvement qui mobilise l’expression d’une conscience planétaire.
Nous reconnaissons dans la nature une source illimitée d’inspirations, de concepts, de recherches et de formes.
Nous
revendiquons, en devoir et en droit, la totale diversité des
expressions, une laïcité sans compromis, une liberté de création
intégrale.
Nous nous adressons aux artistes et aussi aux citoyens
du monde qui ne veulent pas rester les spectateurs passifs de la
destruction de leur planète.
Plus que jamais l’artiste doit être
au cœur de tout projet de civilisation, à la fois artiste et citoyen du
monde, intégralement et radicalement.
Pierre Restany terminait le
Manifeste du Rio negro par ces mots : « La nature originelle doit être
exaltée comme une hygiène de la perception et un oxygène mental… »
- Les termes du Manifeste du Rio negro de 1978 doivent être réaffirmés et radicalisés.
En 1978, l’écologie balbutiait et le
Manifeste du Rio negro
était une première prise de conscience du potentiel formidable de la
nature dans l’expression artistique. Pour Pierre Restany, il s’agit
alors « de lutter beaucoup plus contre la pollution subjective que
contre la pollution objective, la pollution des sens et du cerveau… »
Aujourd’hui,
la crise de la planète est devenue une réalité évidente appelant des
réponses urgentes. La destruction de la forêt Amazonienne est engagée au
prix de l’élimination inéluctable, et hélas silencieuse, des peuples
indiens. La fonte de la banquise s’accélère, le réchauffement climatique
est en marche. L’accroissement de la population mondiale entretient la
pauvreté, favorise les guerres et sert de terreau au développement des
fanatismes religieux et politiques.
Les droits de l’homme et la
laïcité sont de plus en plus bafoués. Les pouvoirs politiques nationaux
et internationaux ont abdiqué devant la finance mondiale.
La crise de l’art dénoncée alors par Pierre Restany s’est elle-même amplifiée.
La
multiplication des investissements financiers invoqués pour exprimer
une marche en avant de la démocratisation des arts aboutit en fait à
promouvoir une grande entreprise internationale de divertissement.
- L’engagement de l’artiste contemporain est la condition du renouvellement de la création.
Au
moment où l’on n’a jamais autant montré d’art contemporain, il se
révèle en fait de plus en plus déconnecté de la réalité sociale,
économique et politique. Il se centre sur l’individu et ses
atermoiements.
Il n’annonce plus, il illustre. Il n’anticipe plus, il accompagne. Il ne dénonce plus, il dissimule.
Les
mouvements intellectuels qui reliaient innovations artistiques et
engagements politiques et sociaux, ont disparu. Ils sont devenus sujets
d’étude ou d’expositions. La pratique artistique n’est plus un
engagement collectif mais une carrière individuelle. Isolés, les
artistes sont moins dangereux. Ils ne dirigent plus la scène artistique,
ils tentent d’en profiter. L’art n’est plus qu’une marchandise cotée.
Il oscille entre spéculation intellectuelle et spéculation marchande. Il
devient stratégie de pouvoir. Il perd sa portée critique.
Nous
réaffirmons le rôle essentiel de l’artiste, alors qu’il est de plus en
plus relégué à celui de simple décorateur dont « les maîtres du monde »
attendent qu’il déguise les crises au lieu de les dénoncer.
- Le Naturalisme intégral appelle une éthique de la création artistique
Le
Naturalisme intégral est non seulement une attitude de combat mais
aussi un aiguillon de la pensée. Il s’oppose intégralement à
l’exploitation destructrice de la nature et à la transformation de
l’œuvre d’art en objet de consommation jetable.
Le Naturalisme
intégral se conçoit comme un outil de développement artistique durable.
Il s’insère même dans l’espace-temps du cosmos.
Le Naturalisme
intégral relie les cultures les plus contemporaines aux plus
ancestrales. Il en appelle à la conscience des “Magiciens de la terre
Sobre o autor
João
Carlos de Souza Meirelles Filho, que assina usualmente como João
Meirelles Filho, é escritor e empreendedor social. Diretor do Instituto
Peabiru –
www.peabiru.org.br e tem seus artigos e ensaios publicados aqui na Envolverde –
www.envolverde.com.br e em –
https://peabiru.academia.edu/JoaoMeirelles/Literatura-e-Artes
[i]
Em 19 de fevereiro de 2013, a Assembleia Legislativa do Estado da Bahia
institui o Museu Artístico e Ecológico Frans Krajcberg, como Fundação
Estatal de Direito Público, segundo o projeto de lei complementar No
113/2013.
[ii]
Frans cede para a Fundação Cultural de Curitiba, da Prefeitura
Municipal de Curitiba, um conjunto de obras, para constituir o Espaço
Krajcberg. Em função da desatenção às obras, retomou-as em 2010.
[iii] Seu sitio localiza-se a cerca de sessenta quilômetros da Rodovia BR-101.
[iv] Trata-se do Parque Estadual Serra do Conduru, nos municípios de Ilhéus, Itacaré e Uruçuca, no Sul da Bahia.
[v]
O russo Vladimir Klavdiyevich Arsenayev (1872-1930) é conhecido como
explorador da Sibéria e o leste da Rússia. Sua obra mais conhecida é
Dersu Uzala, de 1923, baseada nas viagens à taiga de Ussuri, no inicio
do século XX, acompanhado do guia caçador local, Dersu Uzala.
[vi] Os artistas referidos são os franceses Jean Dubuffet (1901-1985), Fernanda Léger (1881-1955),
[vii] A obra se encontra no museu Mauritshuis, em Den Haag (Haia), na Holanda. Inventário N 915.
[viii] O documentário tem roteiro de João Moreira Salles.
[ix]
Nome de uma das propriedades da colonizadora, onde ficava o porto, uma
casa e uma pista de pouso, na beira do Rio Juruena, a 17 km da cidade de
Juruena, por onde iniciou-se a colonização quando o transporte era
feito por barco, a partir do Rio Arinos. Ali Frans, Zé e eu nos
instalamos.
[x] Baxiúba ou paxiúba (
Socratea exorrhiza (Mart.) H. Wendl.), também denominada a
palmeira que anda.
[xi] Segundo o web-site da galeria,
Paralelamente
no ano 2000, editou o livro “Frans Krajcberg – Natura e Revolta”,
lançado no Rio, São Paulo e Paris. O 1º vol. traz um levantamento
abrangente da obra de Krajcberg, e o 2º vol. “Natura” as fotos tiradas
pelo próprio artista em suas viagens pela Amazônia. Em 2005, foi lançado
“Natureza de Krajcberg”, livro de fotografias, ao mesmo tempo o artista
mostrou os trabalhos mais recentes. Finalmente, em 2007 publicou FK,
outro livro de fotografias.
[xii]
Certamente Frans se refere a continuar algo que Jean Dubuffet inicia
com a sua Art Brut, ampliando seu sentido para um encontro com a
Natureza, tal qual ela é.
[xiii] Nota do autor: referindo-se ao planeta Terra.
(O Autor)